8 de junho de 2018, 19h36
Por José Del Chiaro
O tabelamento do preço do frete trouxe problemas jurídicos para o Palácio do Planalto. Mas pelo menos desde 2015 o governo sabe que a medida é inconstitucional. Em fevereiro daquele ano, caminhoneiros que organizaram uma greve para pedir a instituição de preços mínimos não foram atendidos pela presidente Dilma Rousseff: a medida, concluiu o Planalto de então, é inconstitucional por violar o princípio da livre iniciativa, descrito no inciso IV do artigo 1º da Constituição Federal como um dos princípios fundamentais da República.
Nem mesmo paralisações de caminhões são novidade. Além da greve de fevereiro de 2015, em julho de 2012, a categoria parou para reivindicar regulamentação da carga horária e intervalo para descanso.
À época da paralisação de 2015, representantes do governo federal estiveram reunidos com os caminhoneiros e rejeitaram a criação de tabela de frete mínimo, sugerindo apenas a criação de uma tabela referencial de custos do frete rodoviário. O então Secretário-Geral da Presidência, Miguel Rossetto, foi enfático em entrevista coletiva: “A tabela não tem apoio constitucional e é impraticável. Estudamos muito, nos dedicamos muito, no sentido de examinar uma série de alternativas. Não há autorização constitucional para uma tabela impositiva". Audiência pública da comissão externa da Câmara dos Deputados que acompanhava a negociação das reivindicações dos caminhoneiros também trouxe à tona o delicado problema da constitucionalidade de tabelar valores mínimos para fretes.
Surpreende o fato de que as mesmas reivindicações, negadas há apenas três anos devido a sua inconstitucionalidade, tenham agora sido aceitas e implementadas a toque de caixa. Após não ser capaz de resistir à pressão dos caminhoneiros, o enfraquecido governo federal editou, no dia 27 de maio, a Medida Provisória 832, determinando que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) elaborasse em cinco dias uma tabela de preços mínimos para o frete. Três dias depois, a ANTT editou sua tabela por meio da Resolução 5.820/2018.
Inúmeras e bem fundadas críticas da sociedade civil levaram a ANTT, passada somente uma semana da publicação da tabela, a alterá-la pela Resolução 5.821 para tentar corrigir algumas sérias distorções trazidas pela resolução anterior, tais como as relativas a contratos de transporte com prazo determinado então vigentes ou referentes ao frete de retorno.
Todavia, a grave insegurança advinda da imposição repentina de uma tabela de preços mínimos de licitude questionável e objeto de alterações constantes seria ainda aprofundada. No mesmo dia da edição de nova resolução pela ANTT em 07 de junho, representantes dos caminhoneiros se reuniram com o ministro dos Transportes, Valter Casimiro. Na reunião, o ministro anunciou que determinaria que a ANTT tornasse sem efeitos a tabela publicada horas antes. Um vídeo dessa reunião, onde interlocutores dos caminhoneiros elevam o tom de voz e intimidam o ministro dos Transportes, chegou às redes sociais.
Mas o ministro dos Transportes não tem competência nem atribuição legal para interferir na autonomia da ANTT, uma agência regulatória de regime autárquico especial. Agências regulatórias no modelo constitucional brasileiro são órgãos de Estado, e não órgãos de governo. Ou seja, sua atuação é guiada por parâmetros técnicos e independentes.
Todas essas situações de atabalhoamento e insegurança regulatória têm um aspecto em comum: seu surgimento se deve à desconsideração das normas jurídicas aplicáveis no afã de desbaratar a paralisação dos caminhoneiros. As idas e vindas do governo quanto à questão não enfrentam um problema jurídico central, que pode conduzir a uma enxurrada de ações judiciais: a questionável compatibilidade da solução do governo, via tabelamento de preços mínimos, com o princípio da livre iniciativa, que tem como corolário a livre concorrência, previsto na Constituição.
Além dessa clara incompatibilidade com a Constituição Federal, a ANTT não possui como finalidade tabelar preços mínimos para atender a demandas de agentes econômicos. Sua competência prevista em lei é, na realidade, regular o transporte terrestre a partir de determinados princípios, sendo um dos centrais proteger os interesses dos consumidores finais quanto à incidência dos fretes nos preços dos produtos transportados. Este princípio determinante na lei que rege a atuação da ANTT conflita frontalmente com propostas de tabelamento de fretes mínimos, cujos resultados será o aumento da incidência de fretes nos preços de produtos transportados, em prejuízo do consumidor final.
A busca da manutenção da livre concorrência nos mercados regulados pela ANTT não é mero aconselhamento. A lei que rege a atuação da ANTT determina que a agência deverá seguir os princípios da livre concorrência ao menos quatro vezes, em seus artigos 12, 31, 43 e 45. Como já reconhecido pelo governo federal na ocasião da paralisação de caminhoneiros de 2015, a imposição de preços mínimos para fretes contraria frontalmente a busca da livre concorrência, em benefício do consumidor, no mercado de transporte por caminhões.
Ainda mais que essas contradições materiais à legislação aplicável, a imposição de tabela de fretes mínimos – caso de fato venha a ocorrer – viola aspectos formais fundamentais da legislação que disciplina a atuação regulatória da ANTT. O açodamento em se encontrar uma solução imediatista por parte do governo federal fez com que a agência produzisse uma norma administrativa que afeta gravemente agentes econômicos de todos os setores, desde empresas que dependem do transporte rodoviário até os consumidores finais, sem dar a nenhum deles a oportunidade de ter seus interesses levados em consideração.
Com essa medida, o governo federal transferiu para toda a economia nacional os custos dos benefícios conferidos aos caminhoneiros.
Mais uma vez, a realização prévia de uma audiência pública, para que todos os afetados possam informar seus interesses à agência, não é mero aconselhamento. A lei que rege a atuação da ANTT dispõe de modo claro e incontornável que alterações de normas administrativas da agência que afetem os direitos de agentes econômicos no mercado devem ser precedidas de audiências públicas. Tais audiências buscam assegurar, justamente, que todos os afetados por uma norma criada pela ANTT sejam ouvidos e tenham suas opiniões levadas em consideração antes de serem submetidos a esta norma. Trata-se de corolário do processo administrativo democrático: aqueles afetados por uma regulação devem ser ouvidos pelo regulador, que irá ponderar os interesses e argumentos a ele expostos.
Se a Medida Provisória 832 não afastou expressamente a necessidade de realização prévia de audiência pública, a ANTT não o poderia fazer.
O próprio Regimento Interno da ANTT estabelece um procedimento mínimo para a realização de suas audiências públicas. É necessário, primeiro, divulgar amplamente e de maneira prévia a audiência, cujo acesso deve ser livre. As contribuições recebidas devem ser sistematizadas, e os resultados obtidos devem ser publicados. As propostas realizadas em audiência, ainda, devem ser respondidas pela agência.
Dessa forma, muito além da flagrante inconstitucionalidade da Medida Provisória 832, que determina a criação de tabela de frete mínimo, o ordenamento jurídico sofre nova violação quando a ANTT deixa de possibilitar e considerar qualquer manifestação por parte daqueles cujos interesses são diretamente afetados.
Torna-se impossível, portanto, a imposição de qualquer ato normativo aos agentes econômicos enquanto seus interesses não forem levados em consideração. Até que isso ocorra, tabelas publicadas pela ANTT, além de inconstitucionais na origem, não podem ser nada além de propostas para discussão.
José Del Chiaro é sócio-fundador da Advocacia José Del Chiaro. Foi Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 8 de junho de 2018, 19h36 - Site Conjur
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