É possível dizer que a adoção existe em um país que sequer consegue contabilizar o número de crianças e adolescentes que estão encarcerados em abrigos? Que lá entram bebês e são despejados quando completam a maioridade, sem que ninguém tenha acesso a elas? Onde o Cadastro Nacional da Adoção não funciona e os candidatos a adotar aguardam cerca de uma década, sem que lhes seja dada a chance de conhecer crianças aptas à adoção?
Não basta o ECA ser uma das melhores leis do mundo — que o é — se, depois de quase 30 anos, se evidencia defasado em dois aspectos fundamentais. Consagra a filiação biológica como absoluta e só admite a adoção excepcionalmente, quando o próprio Superior Tribunal de Justiça reconhece a prevalência da filiação socioafetiva (Tese 622).
Os procedimentos de destituição do poder familiar, guarda e adoção não dispõem de regulamentação condizente com a atual legislação processual.
Até hoje, de nada adiantou os inúmeros remendos a que o ECA foi submetido. Nem os inúmeros programas já instituídos ou a existência de órgãos, conselhos e fóruns voltados à proteção de crianças e adolescentes.
A convite do Ministério da Justiça, o Instituto Brasileiro da Justiça (IBDFAM), após realizar audiências públicas nas cinco regiões do país, encaminhou sugestões ao projeto que deu ensejo à Lei 13.431/17. Poucas foram acolhidas, mas a maioria não foi considerada.
Por isso, consciente de sua responsabilidade como instituição que há 20 anos tornou-se referência para o aperfeiçoamento do direito das famílias, o IBDFAM elaborou o Projeto Crianças Invisíveis.
Foi criada uma comissão formada por juízes, promotores, advogados que atuam em varas da Infância e Juventude e desembargadores, professores e juristas que se destacam no enfrentamento do tema. Durante seis meses, com os subsídios recolhidos em fóruns de debates, foi elaborado o Estatuto da Adoção, atual PLS 39/2017.
Seu propósito é exclusivamente atender ao comando constitucional que garante a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar. Para isso são necessários procedimentos mais ágeis. Afinal é indispensável estancar as chamadas “adoções diretas” que, em alguns estados, corresponde a 90% da entrega de crianças, sem a participação do poder público.
Também é necessário retirar do Poder Judiciário — que não tem estrutura para tal — o encargo de caçar parentes na tentativa de entregar-lhes crianças que não tem para com eles vínculo de afinidade e afetividade. Além disso, a entrega à família extensa merece o devido acompanhamento, pois 80% das devoluções são feitas pelos parentes que estavam com a guarda.
Igualmente é preciso garantir acesso dos grupos de apoio à adoção e dos candidatos à adoção, às instituições de abrigamento. É a única forma de dar a grupos de irmãos, a adolescentes e a crianças doentes ou deficientes a chance de serem adotadas.
Se nada for feito — em face das críticas que vêm sendo feitas ao PLS 394/2017, sem que qualquer sugestão seja apresentada para aperfeiçoá-lo — continuará tudo igual: cerca de 100 mil crianças invisíveis, literalmente esquecidas em abrigos, sem que as milhares de pessoas há anos cadastradas à adoção tenham acesso a elas. Aliás, são essas dificuldades que levam mães a entregar os filhos a quem os queira, pois seu desejo é que eles sejam adotados e não fiquem abrigados.
Assim, não há como negar que a responsabilidade deste caos é do próprio Estado, que acabou criando um verdadeiro ciclo do abandono. Crianças e adolescentes estão crescendo sem que lhes seja garantido o direito a um lar. Quem quer adotá-las desiste, cansa de esperar, o que os têm levado a “fazer filhos”. Conclusão: crianças sobram nos abrigos.
Diante desta perversa realidade, é possível dizer que a adoção existe? Por isso as mudanças precisam acontecer agora. O PLS 394 merece tramitar com urgência urgentíssima!