Decisão tomada por magistrado exercente da titularidade da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ), em 8.1.18, entendeu por impedir uma deputada federal, por decisão liminar, tomada em ação popular, de tomar posse na pasta do Ministério do Trabalho, eis que, segundo a petição inicial e documentos instruíntes da demanda, “a candidata” à ministra havia sido condenada em duas ações trabalhistas anteriores. E tal fato-ato-judicial evidenciaria “ofensa à moralidade administrativa”, prescrita no artigo 37, caput, da Constituição Federal. Violação ao princípio constitucional especial da moralidade administrativa[1]. Disse com tais letras:
“Em exame ainda que perfunctório, este magistrado vislumbra fragrante desrespeito à Constituição Federal no que se refere à moralidade administrativa, em seu artigo 37, caput, quando se pretende nomear para um cargo de tamanha magnitude, Ministro do Trabalho, pessoa que já teria sido condenada em reclamações trabalhistas, condenações estas com trânsito em julgado, segundo os veículos de mídia nacionais e conforme documentação que consta da inicial – processos 0010538- 31.2015.5.01.0044, encerrado com decisão judicial transitada em julgado, (fls. 29/246 - note-se especialmente que operou-se o trânsito em julgado da decisão condenatória cf. fls. 169); e 0101817-52.2016.5.01.0048, encerrado com acordo judicial (fls. 323/324).
É bem sabido que não compete ao Poder Judiciário o exame do mérito administrativo em respeito ao princípio da separação dos Poderes. Este mandamento, no entanto, não é absoluto em seu conteúdo e deverá o juiz agir sempre que a conduta praticada for ilegal, mais grave ainda, inconstitucional, em se tratando de lesão a preceito constitucional autoaplicável.
(...).Trata-se de sacrifício de bem jurídico proporcional ao resguardo da moralidade administrativa, valor tão caro à coletividade e que não deve ficar sem o pronto amparo da tutela jurisdicional.
(...).
DEFIRO (...) provimento para SUSPENDER a eficácia do decreto que nomeou a Exma. Deputada Federal Cristiane Brasil Francisco ao cargo de Ministra de Estado do Trabalho, bem como sua posse.”
O tema em jogo, em verdade, é o direito político fundamental de participar da coisa pública, liberdade-participação (Celso de Mello) e as condições e restrições para o seu exercício[2].
Sabemos que as restrições aos direitos fundamentais se escalonam em diversos níveis normativos. Da Constituição à legislação ordinária. Há os limites expressos e os imanentes, quando tratamos de restrições de índole constitucional a tais direitos. Ou seja, quando a própria Constituição define as condições e limites para o exercício de tais direitos, a restrição ao direito fundamental em foco é de índole fundamental. Quando a Constituição, direta ou indiretamente, autoriza o legislador ordinário a estabelecer a restrição ao direito fundamental, temos uma restrição de índole infraconstitucional, como é o caso do artigo 14, § 9º, da Constituição Federal, que autoriza o legislador eleitoral a estabelecer outras hipóteses de inelegibilidades para cargos eletivos, para além daquelas previstas nos demais parágrafos deste dispositivo.
No plano da pré-compreensão constitucional, da teoria constitucional, temos a distinção entre regras e princípios constitucionais, que são normas com diferentes graus de densidade normativa, portanto, com diferentes graus de aplicabilidade (José Afonso da Silva) e/ou diferentes medidas de concretização (Gomes Canotilho/Friderich Müller).
Ainda no plano da dogmática constitucional é sabido que quando tratamos de direitos fundamentais, as interpretações devem ser ampliativas, para operar a melhor concretização possível de tais direitos (Canotilho/Pontes de Miranda/Carlos Maximiliano). As restrições são tomadas em sentido estrito, e não em sentido ampliativo, extensivo.
Na nossa República deputados federais e presidentes se elegem por mandados conquistados nas urnas populares; juízes acedem aos seus postos por concurso público, não obstante alguns magistrados de tribunal, pelo quinto constitucional, passam por um crivo político e jurídico em processos de decisões colegiadas complexas (Ministério Público e OAB); ministros de Estado são nomeados e destituídos ad nutum pelo presidente da República.
Temos então três formas diferentes de participar da coisa publica; de exercer o seu status activus (Jellinek); três veículos de seleção, a operar, em cada um dos postos referidos, o direito fundamental de participar do poder público, de exercício de seus poderes e deveres, ritos e procedimentos — um pelas urnas; outro pelo concurso; e o terceiro, por nomeação de quem teve autoridade investida pelo voto popular na chefia do Executivo federal.
E vejamos na Constituição da República, as normas (regras e princípios) que regem os requisitos e procedimentos para o acesso ao cargo de ministro e ao de deputado federal. E vejamos segundo a topografia constitucional vigente, por ordem numérica crescente:
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 14 (...) – A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (...):
§ 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei: (...) II - o pleno exercício dos direitos políticos; (...) VI - a idade mínima de: (...) c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;
§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994)
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (...). III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; (...) V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
Art. 56. Não perderá o mandato o Deputado (...): I - investido no cargo de Ministro de Estado
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: I - nomear e exonerar os Ministros de Estado;
Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.”
O dispositivo 87 exige, singelamente, a (i) idade de 21 anos e o (ii) livre exercício dos direitos políticos, para ser provido o candidato ao cargo de ministro, seja homem, seja mulher (artigo 5º, II, CF).
A inicial e a decisão não referem a falta de quaisquer dessas duas condições, únicas aptas a impedir o acesso ao posto, segundo expressas regras constitucionais que não podem ser ponderadas, sopesadas, em face do difuso princípio da moralidade, que não possui densidade normativa suficiente a impedir o acesso ao cargo, ainda mais diante da decisão-fato-judicial levada em conta: condenações em ações trabalhistas, que são ações ressarcitórias, e não sancionatórias de condutas, como são as ações penais e de improbidade, únicas ações/condenações que podem levar a suspensão dos direitos políticos, como vimos no artigo 15, III e V, da Constituição Federal.
Tivesse havido condenação, com trânsito em julgado em ações penais (efeito anexo da condenação, por imposição constitucional) ou de improbidade (e essa deveria possuir capítulo de aplicação da suspensão dos direitos políticos de forma literal, inclusa), aí sim, o Constituinte impõe uma restrição à posse. E nesse aspecto, estaria presente o tema da probidade/moralidade, ou seja, a moralidade somente na forma de improbidade administrativa praticada pela própria candidata a ministra, mediante reconhecimento em ação judicial própria, com trânsito em julgado, poderia levar a impediência ao posto ministerial. Ou a moralidade subjacente a condenação criminal transita em julgado.
É presumido que a nomeável tem vinte um anos, não só pelo que seu semblante revela, mais por que tendo sido eleita deputada federal, e a Constituição exigindo 21 anos para o posto eletivo, é claro que seu processo de registro fora deferido, ela fora diplomada e empossada, atendendo esse segundo quesito para o posto. Ademais, sendo deputada federal, esta fica imune a perda do mandato, quando assumir ministério (52, I, CF).
Pela Constituição, nomear ou demitir ministro, é ato político, que só pode ser feito pelo Presidente da República (e os atos políticos tem uma sindicabilidade judicial restrita, segundo nossas tradições jurídicas...). Um juiz só pode ter atuação indireta e eventual antecedentes neste tema, ao proferir decisão condenatórias em temas penais ou de improbidade. Ou poderia até fazê-lo em ação popular, em proteção da legalidade constitucional, caso a nomeável não tivesse 21 anos ou estivesse com os direitos políticos suspensos! Todavia, não se mostram ao caso essas duas situações.
A deputada federal em questão foi eleita, diplomada e empossada no mandato eletivo. Assim presumida elegível diante de todas as normas constitucionais e ordinárias que preveem condições de elegibilidade ou inelegibilidades.
Todo o tema de moralidade administrativa como pressuposto para o exercício do mandato parlamentar federal em comento foi densificado pelo legislador eleitoral, nas hipóteses descritas pela LC 64/90, com as alterações da LC 135/10. E o legislador o fez, não só por que autorizado pela Constituição, mais por que nesses temas, de restrições de direitos fundamentais, cabe a uma lei complementar, lei de quorum qualificado, estabelecer essas outras restrições para além do texto constitucional. Princípio da legalidade qualificado pela exigência de lei complementar regulatória da espécie.
A decisão judicial federal é criticável e reformável não só em face do princípio constitucional estruturante da separação de poderes, que não exaure sua normatividade na literalidade do artigo 2º da CF, mas demanda a compreensão articulada de inúmeras regras de competência dos órgãos constitucionais, como é o caso do artigo 84, I, que prescreve, exclusivamente, ao presidente da República, o poder de nomear ou destituir ministros de estado.
Também face aos princípios de metódica constitucional a decisão deve ser analisada e revista. Podemos referir dois desses princípios de interpretação constitucional: princípio da unidade de constituição e o princípio da justeza ou conformidade funcional (Canotilho). Pelo primeiro, é necessário entender que todas as normas da Constituição tem igual valor e não apresentam contradições na densificação/concretização entre princípios e/ou regras — ou seja, o intérprete tem que entender o valor de todas as normas constitucionais, sem discriminações arbitrárias, somente inteligindo e aplicando as discriminações feitas pelo próprio texto constitucional; pelo segundo princípio hermenêutico, o intérprete não pode interpretar as regras de competências e procedimentos pré-estabelecidos no texto fundamental, de modo a subvertê-las, ou seja, não pode deslegitimar uma competência do Executivo traçada na Constituição, sem causa justa e fundada, que, no caso presente, seria a ausência de 21 anos ou de presença da suspensão dos direitos políticos!
A decisão federal em comento, ao introduzir um novo elemento condicional ao ato de posse, não posto pela Constituição ou pelo legislador ordinário, subverteu o princípio a justeza ou conformidade funcional em dois níveis: de um lado, deslegitimando indevidamente a competência presidencial; de outro, invadindo a seara do próprio constituinte, ao estabelecer quesito judicial sem lastro normativo-constitucional ou legal para o posto de ministro de estado. No caso, o Judiciário se fez legislador ad hoc, esquecendo que sua atividade é exercício de poder sub legem e sub constitutionem (Celso Antonio Bandeira de Mello e José Carlos Barbosa Moreira). Pois não poderia ter inovado, primariamente, a ordem jurídica, tarefa exclusiva do constituinte, do legislador de reforma constitucional ou das leis ordinárias...
Assim, pensamos, a normatividade constitucional vigente, a teoria dos direitos fundamentais, a dogmática constitucional, os princípios de interpretação constitucional, vistos de forma mui concisa acima, indicam que a solução alvitrada no ato judicial em análise é ultra vires, desbordante dos limites da jurisdição judicial, afrontante do direito político fundamental de participar da coisa pública e escorchante da competência presidencial de nomear ministros de estado.
O que temos criticado, ao lado de tantos autores importantes (Lenio Streck, Marcio Camarosano, Eros Grau, Dimitri Dimoulis, Adriano Soares da Costa, Luiz Eugenio Scarpino Jr.), é o moralismo contra constitutionem. O voluntarismo judicial salvacionista que quer corrigir o direito positivo vigente, seja ordinário ou constitucional, por seus próprios critérios morais, substituintes dos critérios de conveniência e oportunidade da instância política constitucionalmente competenciada: o Congresso Nacional.
E tal postura moralista — corretora do direito vigente — resulta da própria decisão do magistrado — insuflada por uma hábil provocação advocatícia — na qual “se positivou” que as condenações trabalhistas em foco seriam fatos-judiciais aptos a impedir a posse, por força do princípio da moralidade administrativa, sem qualquer decisão legislativa antecedente vertida pelos canais democráticos de feitura de leis.
Esse caso é apenas mais um que ganhou repercussão nacional e demonstra, para os estudiosos do Direito Público, o quanto nossa Constituição, seu sistema de limitação de poderes e de direitos fundamentais está sendo mal compreendida por alguns segmentos e agentes do Judiciário; mal aplicada e mal concretizada, por quem jurou solenemente respeitá-la e protegê-la, em toda extensão de seu corpus normativo, sem a promoção de raciocínios moralistas corretores do direito positivo, eis que não é pelo Judiciário e pela moral que se pode alterar o direito produzido nas fornalhas da democracia constitucional.
1 Para a compreensão pormenorizada da categorização de princípios (estruturantes, gerais e especiais) segundo o grau de abertura e densidade, indicamos a leitura nossos trabalhos: Ruy Samuel Espíndola, Conceito de Princípios Constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 288 p; Princípios constitucionais e atividade jurídico-administrativa: anotações em torno de questões contemporâneas. In: LEITE, George Salomão (org.) Dos Princípios Constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. 429 p. p. 254-293
2 O melhor estudo, já produzido no Brasil, sobre o tema da restrição a direitos políticos fundamentais, é o de Néviton de Oliveira Batista Guedes, “comentários aos artigos 14 a 16 da Constituição Federal” in: - SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio, et all. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina/IDP, 2014, p. 660 e ss.
Ruy Samuel Espíndola é advogado militante nos tribunais superiores, professor de Direito Constitucional, imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas e membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2018, 12h40 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet