A cena se deu na Cidade de Deus, favela carioca notabilizada pelo filme de Fernando Meirelles que retrata a atuação de um bando de traficantes. “Conta por que você fugiu de casa”, pede o professor de jiu-jítsu e PM Fernando Pasche ao garoto V., de 7 anos, diante do repórter de ÉPOCA. Sem encontrar palavras, o menino sai do tatame com seu quimono azul e corre até a porta da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), num contêiner ao lado. Ele pega um objeto no chão e volta até o instrutor. “Foi por isso que fugi”, diz V., exibindo uma cápsula de fuzil que acabara de recolher em bom estado, sinal de que o disparo havia sido feito recentemente.
Apavorado com os tiroteios quase diários que testemunhava por lá, V. resolveu deixar a Cidade de Deus. Certo dia de novembro, ele saiu de casa antes de amanhecer apenas de bermuda. Caminhou sem rumo. Os pais comunicaram o desaparecimento aos policiais, que vasculharam a região e o encontraram na hora do almoço, a alguns quilômetros de casa. Seu barraco se situa na área chamada Caratê, a mais conflagrada da favela, na qual agentes da lei e traficantes enfrentam-se cotidianamente.
Comandante da UPP da Cidade de Deus, o capitão Daniel Cunha Neves ouve impressionado o relato do menino. V. sofre com o terror deflagrado pelos bandidos, que buscam a retomada de território e inovam na estratégia de agora recrutar crianças para suas fileiras. Com quatro meses à frente da unidade, o capitão Neves se diz preocupado com o cerco do tráfico às crianças da favela. Depois de arregimentar adolescentes para o mercado das drogas, os criminosos agora aliciam também meninos com menos de 12 anos. “Já existem crianças pegando em armas para confrontar os policiais”, afirma Neves.
O comando da Polícia Militar confirma a nova prática das organizações criminosas. “A quantidade de jovens com armas tem aumentado muito, a ponto de já observarmos crianças de 10 a 12 anos com pistolas na mão”, diz o porta-voz da PM, major Ivan Blaz. Segundo ele, a UPP identificou meninos como soldados do narcotráfico também no Complexo de Lins, conjunto de favelas da Zona Norte da cidade. “Nossos policiais estão com medo. Se houver confronto e aparecer uma criança baleada, nunca acreditarão que ela estava armada”, afirma Cunha Neves.
Ocupados por meninos com poder de fogo e imprevisíveis como qualquer criança costuma ser, becos e vielas se transformaram num campo de batalha ainda mais traiçoeiro. Na noite do dia 3 de dezembro, policiais da Cidade de Deus capturaram três adolescentes acusados de portar 48 pacotinhos de maconha e 91 de cocaína, além de radiotransmissores. L. e H., ambos de 16 anos, foram levados para a delegacia. Atingido na perna por um tiro, o terceiro garoto, de 12 anos, ficou internado no hospital sob a escolta de PMs.
Instalada no 9º andar do Fórum do Rio de Janeiro, a coordenadora das Varas da Infância e Juventude do estado, Raquel Chrispino, faz uma radiografia cética do fenômeno. “Estamos numa guerra civil. A PM vem apreendendo cada vez mais menores de 12 a 18 anos”, diz ela, apontando esse fator como uma das causas de o crime organizado buscar agora armar crianças ainda mais novas. Em 2015, a polícia do Rio capturou 10.262 adolescentes, 22% a mais que em 2014. “O policial militar não pode pôr a mão num menino de 11 anos. E o bandido sabe disso”, diz a juíza. “É como se, na prática, já tivéssemos os efeitos ruins da redução da maioridade penal.”
Não é apenas por falta de mão de obra disponível que os traficantes vêm baixando a faixa etária de seus soldados. Além de, em tese, não causarem maior desconfiança, crianças de até 11 anos não podem ser internadas em entidades socioeducativas. Quando muito, os garotos são levados a instituições de abrigo até que os responsáveis possam reassumir a guarda. Assim, logo eles estão de volta às ruas, ao tráfico e a outros delitos, uma vez que boa parte deles dispõe de uma arma de fogo ao alcance.
Um dos efeitos mais nítidos desse aumento de detenções de crianças e adolescentes é o volume de processos na Justiça com a participação de menores de idade. Apesar do drama crescente, a capital fluminense tem apenas uma Vara da Infância e Juventude para cuidar de todos os casos. A comarca acumula hoje 15 mil processos, enquanto numa Vara Criminal comum esse número não passa de 3 mil. Desde junho, sua juíza titular, Vanessa Cavalieri Felix, e os magistrados auxiliares realizam audiências semanais com os menores apreendidos pela polícia. Até 24 de novembro, eles haviam ouvido 1.501 adolescentes. Nessas audiências, liberaram 566 deles (38%) e mandaram 935 (62%) para as unidades de internação. Embora esse universo exclua as crianças de até 11 anos e menos de 20% dos menores tenham sido detidos por suspeita de envolvimento com o tráfico, os dados corroboram as evidências de que o crime organizado está cooptando cada vez mais crianças. No total, 30% dos capturados tinham de 12 a 15 anos. Como as audiências começaram em junho, não há estatística anterior para que possa ser feita uma comparação.
Apesar das detenções crescentes de menores, o Rio de Janeiro tem apenas uma Vara da Infância e Juventude
Dois dias depois de terem sido capturados na Cidade de Deus por porte de drogas, L. e H. entraram escoltados por guardas na sala de audiência da Vara da Infância e Juventude, enquanto a juíza Vanessa conferia a lista de menores capturados no final de semana anterior. Na lista há mais de 40 nomes, um número que costuma crescer nos dias de sol a pino, em que as praias ficam apinhadas de gente. Durante a audiência, L., H. e outros meninos alternaram momentos de serenidade com outros de choro descontrolado, principalmente quando viram suas mães em lágrimas. Disseram que passaram a atuar no tráfico em troca de R$ 300 por semana. A dupla contou que, já rendida no chão, levou chutes dos policiais e levantou a camisa para mostrar os hematomas. Só não soubera esclarecer de onde partiu o tiro que atingiu o colega de 12 anos. A juíza auxiliar Meissa Vilela decidiu que eles responderão ao processo em liberdade e encerrou a sessão com um duro alerta: “Eu vejo aqui que menino do tráfico leva tiro todo dia. Ou morre ou fica amputado”.
Ciente da linha delgada entre o bem e o mal por onde circulam as crianças em área de risco, o PM e instrutor de jiu-jítsu Fernando Pasche oferece uma alternativa de inclusão social por meio do esporte. Seu centro de treinamento de artes marciais na Cidade de Deus, em funcionamento desde 2013, reúne 78 alunos entre 5 e 17 anos, entre eles o menino V., que chegou ao extremo de fugir de casa para escapar daquela realidade. Pasche já perdeu alunos aliciados pelos traficantes, mas vangloria-se de ter tirado muitos outros do crime. Como ele, é preciso que todos os responsáveis suem a camisa para evitar o mal maior de ter crianças na delinquência.